sexta-feira, maio 02, 2008

Isabella - Artigo do Dr. Paulo Pereira





Isabella queria viver. João Hélio e todas as outras crianças assassinadas também. Criança quer a vida e não a morte. Crianças sonham com o futuro, querem crescer, ficar bonitas, encontrar seu par. Crianças desejam o bem-estar, querem o carinho, a proteção, o amor que os adultos lhes devem dar. Querem até mesmo os limites que se lhes precisam impor. Criança não gosta de dor. Criança é energia, quer brincar, correr, descobrir, mexer em tudo, dominar o computador.
Isabella, você se foi antes da hora, não a veremos mais; você é agora só o nome de um caso nas páginas policiais. Que seres humanos não quiseram que você soprasse a vela no seu aniversário de seis anos? Que mente doentia lhe impediu de ver a luz de um novo dia? Isabella, às vezes, na verdade que se revela, a vida não é tão mágica nem tão doce como a gente gostaria que ela fosse. Isabella, na corrida até a janela, no vão aberto às pressas na tela de proteção, na queda, no corpo que se estatela no chão, não é você que morre: é a esperança no ser humano que se esfacela. Afinal, onde está o perigo? Lá fora, na rua escura, onde vagam desconhecidos, ou aqui dentro, onde deve estar a ternura dos entes queridos?
O ser humano perverteu a natureza. Num mundo normal, em que todos tivessem direito à vida e à liberdade, os mais fortes protegeriam os mais fracos. Ao invés disso, os que carecem dos meios de defesa não passam de instrumentos de satisfação dos desejos mais bestiais dos ditos "mais fortes". Pessoas destituídas de força espiritual acham que podem compensar da forma mais ignóbil possível, exercendo dominação sobre seres indefesos, que nada têm a ver com isso. Pássaros presos em gaiolas, crianças abusadas sexualmente por pais, padrastos ou outras pessoas da própria família, crianças mortas. Há um sem-fim de padres pedófilos circulando livremente com a proteção do Vaticano; suas vítimas vivem dominadas por profundos traumas psicológicos; muitas se suicidam. Jovens são mandados à guerra para matar e morrer. Potentes artefatos bélicos matam indiscriminadamente de um lado e de outro, militares e civis. Aliás, não vejo diferença nenhuma em matar um militar ou um civil. Dentro da farda não há um ser humano?
Isabella, se foi seu pai que lhe ceifou a vida, ele não era pai de verdade. Pais de verdade não matam filhos; preferem morrer para que os filhos vivam. Seres humanos de verdade não querem matar, preferem lutar contra sentimentos mórbidos que os tentam dominar. Isabella, quem chora por você? Vejo na TV milhares de pessoas acotovelando-se para ver os suspeitos da sua morte; muitas dizem ter vindo de outras cidades, viajando centenas de quilômetros só para isso. Há gosto para tudo, mas o que me intriga é: como acham tempo?! Não têm nada mais produtivo e útil para fazer? Esse ócio é um dos fatores que explicam por que somos terceiro mundo. E eu aqui, brigando com as palavras e tentando encontrar uma brecha nos meus afazeres para escrever este texto.
Isabella, este mundo é de mentirinha. E tem quem quer que continue assim. Não são todos que desejam um mundo de verdade, com seres humanos de verdade, com instituições de verdade, com famílias de verdade. Tenho certeza de que você iria lutar contra a hipocrisia, a perversidade, mas lhe tiraram esse direito. Alguém entendeu que você não podia continuar a viver. Se eu pudesse, trar-lhes-ia, você e todas as crianças assassinadas, de volta à vida, pois às vezes tenho a impressão de que as escuto clamando pelo direito negado.
Meu coração se oprime quando ouço Gal Costa cantar: "Ressuscita-me, ainda que mais não seja/ porque sou poeta/ e ansiava o futuro/ ressuscita-me, lutando contra as misérias do quotidiano/ ressuscita-me por isso/ Ressuscita-me, quero acabar de viver o que me cabe, minha vida/ (...) Ressuscita-me para que a partir de hoje/ A família se transforme/ E o pai... seja pelo menos o universo/ E a mãe... seja no mínimo a Terra..." (de Caetano Veloso, baseado em poema de Vladimir Maiakovski).
A morte de crianças, seja qual for a causa, choca-me profundamente, pois subverte a ordem natural. Por isso, embora eu sempre procure terminar meus textos dizendo algo que eleve o astral, hoje não dá, hoje eu não estou legal.
Paulo Pereira da Costa, promotor de Justiça, autor do livro "Pensando na Vida" paulopereiracosta@uol.com.br